"A poesia reconstitui-se hibridamente nas expressões, no magnetismo da cosmovisão
e esculpe as suas e-imigrações semantúrgicas-indizíveis nas geografias-em-desdobramento-dançante:
oscilações das cartografias-em-risco, partilha metamórfica do desassossego,
acoplamentos de subversões-perplexidades, transmutação dos murmúrios-sígnicos, incarnação-mutante dos devires,
informulada fractura humana-animalizante, sanguinidade do desejo-experiência-pensamento na exploração mutual
do enigma que se dissipa, intersecciona, ecoa e retorna violentamente ao estranhamento da germinalidade do deserto,
à actualização do silabário das epifanias, às vertigens da imanência,
à heterogeneidade fertilizadora-sacralizadora do olhar-sismológico perdido do (no) mundo……"
Luis Serguilha
No caos reside uma forma,
uma musicalidade, uma sequência, uma lógica. Várias de uma, ou uma de várias.
Mesmo dissonante a vivência do som e do ritmo promovem rupturas e quebram a
forma, para Criar e Ser. Há uma essência que subjaz e permanece, mesmo que se
rompa a sintaxe, se quebre a forma, ou se evidencie uma disritmia.
A irreverência e descontinuidade buscam um
novo sentido, através de signos pré-existentes, por isso algo permanece
intacto. O canto dos pássaros ecoa no metálico Stravinscky. Os corais
Beneditinos estão presentes no Rock. Tudo é tudo modificado, reorganizado, mas
no desfeito há o refeito. A garrafa pet está na construção da casa, feita com
tijolos reciclados. Vivem em mim todos os que amo e os que não aprendi a amar.
Todas as posturas mais conservadoras coabitam
as vanguardas inovadoras. O sentido está para o Dadaísmo, assim como o passado
alimenta o Futurismo. Todos os textos poéticos continuam e continuarão a
existir nos textos posteriores, afirmando-os ou negando-os.
O
texto KOA’E de Luis Serguilha representa o inominável feito de nomes que já
existiam, porém foram recombinados, ressignificados, rearticulados, construindo
a desconstrução do sentido, para manter viva a transformação, A “metamorfose ambulante”
e emergente, numa nova perspectiva, olhando as palavras na sua missão primeira:
não de denominar, mas demonizar, chacoalhar e perturbar o silêncio da poesia e
do leitor, a fim de torná-lo intolerante, desestabilizador. E, num efeito
cascata, fazer do receptor uma extensão da ação desdobradora da inquietude, da
loucura, do grito, das sensações, das inconsciências obtusas e secretas. É
atirá-lo contra o sistema “perfeito”, organizado, recheado de “boas intenções”,
e tão falso de uniformidades e redenções ao belo e sublime. O livro é um
demaquilante da imposição e arbitrariedade do signo, à medida que liberta as
palavras, deixando-as brotar e atravessar uma a outra, retecendo possibilidades
infinitas, onde elas se beijam e se agridem, num combate explosivo que implode
a forma tradicional da escritura, para construir metáforas ímpares e
redimensionar a teia do inominável, no emaranhado da liberdade de escrever em
liberdade.
Luis Seguillha é um narrador, um eu lírico,
uma voz, ou uma polifonia, um denominador, ou não há como denominá-lo? Ele é o
quebra-nozes de palavras, que desarticula o texto, querendo encontrar entradas
e mostrar que não há saídas. Numa contenção surreal, feita de flores de
ametista, o tempo do texto é registrado nos relógios moles de Salvador Dalí e o
espaço cubificado por mãos de Picasso, mas ecoa como o texto de Tzara, que só
quer o silêncio dos sentidos, mas pra tanto acaba provocando estrondos, a
partir do encontro e desencontro das palavras – que se entrechocam e se
acariciam, desafinam e afinizam, numa escrita sedutora que evoca a poética da
transgressão.
Classificar, adjetivar textos como os de
KOA’E é querer explicar a poesia, logo destruir a literatura, ou querer
singularizar a plurissignificação. E o que há na arte desse livro é a
legitimidade do discurso, pois se narrar é viver, continuar ser...O narrador de
KOA’E desconstrói, retalha o texto, reedificando no seu desfazer o sentido
pleno da liberdade literária: o movimento paradigmático sem eixo, abdica da
lógica sintagmática, reinstalando uma nova ótica, que não se quer absoluta,
pois que mutante. Serguilha, como um “chapeleiro louco”, senta-se a mesa
literária, abrindo mão dos tradicionais talheres e banqueteando-se das iguarias da língua portuguesa,
lambuzando-se com a diversidade e adversidade, usando todos os sentidos.
Há uma profunda e tensa reivindicação de
autonomia em KOA’E, tanto para quem escreve, como para quem lê. Brota da desconexão
que edita ilogicidades poéticas no fluxo da insanidade a lucidez do dessentido.
O aparente desmoronamento sintático cria uma nova lógica. Nesse jogo de
palavras cruzadas pela complexidade semântica, que cada signo carrega, tecesse
uma teia infinita, uma constelação, uma via láctea literária, feita de
paralelepípedos e imensidões, concretudes abstratas e abstrações concretas.
A mistura revolucionária da convulsiva
ebulição queima os olhos e provoca um pane cognitivo no leitor, que empaca pra
deslanchar na resiliência e, simultaneamente, deslizar-se desdobrável nesse
mosaico de linguagens paraliterário.
Enquanto leio KOA’E, remeto-me as
fotomontagens de Jorge de Lima e Murilo Mendes, e chego ao inspirador Salvador
Dalí, porque há recortes em todas as novidades, diferenças e vanguarda que são inconscientes. O texto de Serguilha é
edificado sobre a areia, cheia de silêncios e gritos entrelaçados, numa
tumultuada aglomeração e tempestade de remendos únicos, por serem plurais.
Percebe-se uma costura as avessas, tecida por linhas tortas, curtas, longas,
desenhando descaminhos e atalhos para o desencontro e a convivência dos
contrários: suavidade e brutalidade, anciãos e pirralhos, orgulhosos e
humilhados, avesso e direito, tênue territorialismo que encerra os que são
livres dos que nunca deixaram de se escravizar.
KOA’E é o que é, ou quase um ‘qual é?!’ da
gíria popular brasileira e isso basta.
Se narrar é ser pai e mãe, o desnarrar do KOA’E de Luis Serguilha nega a mãe e o pai,
sem se sentir filho de ninguém, encontrando sua origem no próprio fazer da
narrativa, nas palavras que fazem o texto uma escrita andante, pra nele o leitor caminhar.