quarta-feira, 13 de outubro de 2021

PARÁFRASE

           No badalar do sino são 6 horas. Há um quarto do dia já perdido e o silêncio após a badalada anuncia os ruídos das calçadas e ruas desenhadas por passos operários. O sol chega a janela e o rosa da parede clareia os olhos da menina, fazendo brilhar seu desejo de viver, mas pela abertura da porta ecoa a voz que corta a liberdade daquele momento. O aposento fica cheio de ordens e vigilância. 
             Abrem-se os olhos, depois da brecha atiçada pela luz dos postes, pois é noite e a fogueira diante da lua cheia faz um chamado a vontade de fugir pela janela. O parapeito vira um trampolim para o mundo. Burlando o controle, a saia voa leve pela rua sob estrelas. A secura da boca na madrugada traz a sede que a acorda.        
       Aos poucos a madrugada atravessa seu corpo tomado pelo tempo. Suas necessidades fazem estremecer, quer os olhos cerrados e banhados pelo sono, porém não consegue dormir, sonhar, nem sequer lembrar do que imaginava quando encarava o papel de parede encarnado, usando carmim no rosto ou batom vermelho, naquele espelho que revelava uma mulher tomada pelo impulso da satisfação. 
           Enquadra-se na moldura a grisalha figura matriarcal que pintou as paredes daquela casa e seu rosto em maquiagens extravagantes, na escuridão fugidia em que a liquidez a fazia ultrapassar obstáculos, tecer desafios e alcançar a sensação permissiva e animar-se, mordendo a oportunidade de sentir o perfume da liberdade. Depois, a água do banho e o cabelo trançado pra escola enganava a censura, mas recendia na manhã o orvalho das noites perfeitas. Escorria das mãos a água gelada e os segredos e confissões que jamais se saberia. 
           Assim, perfeito era o retrato pintado em cores mornas que o raio do sol tingia de luz toda manhã. No fundo do quadro, em meio a mudança dos bisnetos, foi descoberto um bilhete que dizia: a chave da porta nunca foi encontrada, mas nunca deixei de sair e exibir lá fora o que eu não podia ser aqui dentro. Arrombem as janelas e sigam a noite, até o grito do amanhecer, antes que sejam emoldurados.

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