O vento que venta daqui
é o mesmo que venta de lá?
Não, eu sou controvento,
ventania de esparramar,
até virar brisa,
desabotoar a camisa,
para o sangue ventilar.
Liquificar sem ar
controvento suado,
prá na liberdade
do vento
tocar, no sino, um dobrado
e ventando poder voar,
soando um verso molhado...
No canto do quarto ela se aquietava, tentando ouvir da vida uma sugestão, sob aquela torrencial chuva e o vento que assobiava pela janela, encolhia-se toda, refém de si-mesma. Os livros sobre o tapete, para serem doados, e as histórias que viveram juntos a cada leitura. Vinis no canto oposto, guardavam os sons da adolescência, trilha sonora de tantos sonhos, de tanta coragem, tanto viço.
Deslizava as mãos sobre as cartas, nunca mais escreveu tão macio, tantas promessas e juras de amor, como naqueles papéis decorados. Desenhos tão sonhadores protagonizavam o cenário de palavras pra sempre eternas. Não conseguia nem imaginar por onde ele andaria, só lembrava a sua mão decidida, tocando a sua vontade. Precipitava-se toda ao sentir o cheiro dele se aproximando, por trás, sorrateiramente, beijando-a na nuca, quando seus cabelos presos, aromatizados pela comida, se soltavam, ela virava-se e, o prenúncio da fome alimentava o desespero, já que comida não mais haveria, pois jaz a refeição do dia. Depois de todo carinho trasformado em livre expressão do desejo, eles saíam para almoçar fora, encharcados de tanta satisfação.
Ela sente-se contagiada pela memória de tanto amor. Como pode um amor assim acabar? Por que alguém entra na nossa vida, pra sair dizendo que foi um equívoco? Onde foram parar tantas palavras confessas? Lareiras acesas? Vinhos com o gosto de uma noite inteira?
_Ontem, ele estava aqui. Diz com todo fôlego que resta, no meio da boca seca, que não sabe mais o que fazer com tanto amor. Ainda bate no peito, que caminha até acelerar um "sentimento maior que o mundo"
Aos poucos, ela se levanta e segue para a janela. Olha o dia, sente o vento e promete que vai arrancá-lo de dentro dela. Pega o batom vermelho, caminha decidida em direção a parede branca e risca com força tudo o que sente ainda por ele, fazendo uma boca de palhaço, com delineador desenha os olhos bem arregalados, o nariz de bola, o chapéu amassado. Faz-se um picadeiro. A alegria das cores contrasta com a tristeza, que ela tenta disfarçar.
Hoje, pela manhã, tomou a decisão:_ Não quero tanto amor dentro de mim. Vou partir, sem ter como voltar. Tenho aeroplanos secretos de sair do fundo de mim e nunca mais te procurar. Até que a janela se abra, novamente, para o céu dos meus olhos e me faça acreditar, depois de aprender a confiar em mim, me amar e nunca mais deixar ninguém me atirar num canto solitário recheado de lembranças. Não quero mais o engano, a maldade e a traição, rondando dias-falsos, escondendo verdades - que me negou. Renascerei da minha própria dor.
Vem uma criança, entrando de rompante pela porta da frente, expulsando o adulto pela entrada dos fundos. Saem pernas curtas e sem medo de riscos, correndo de dentro de casa pra rua: pés-no-chão da alegria. Mãos maestram as cores dos brinquedos-imaginários, processando a magia da liberdade.
Goza-se o prazer do olhar ingênuo e dentro dele uma vontade de viver e comer todos os doces, oferecidos pela guisa-levada de vitrines inacessíveis das vendas, doceiros e quituteiras. Mastiga-se a gula entre sorvetes e pipocas, cachorro-quente e mariola. A boca sempre lambuzada, as solas dos pés com cor-de-chão e os olhos aprumados ao céu, voando com as pipas-asas, desviando-se das marimbas.
Os joelhos arranhados, machucados, tatuados pelas aventuras - descrição de travessuras. Cotovelos escurecidos de apoiar-se, para desafiar a gravidade, ver o arco-íris, ou o outro lado do muro. E, de soslaio, um olhar atento voltando-se sempre ao portão de casa, a espera de um grito sair pela porta em convocação para o retorno ao porto-seguro (proteção do Ser infante em regras e regimentos), quartel que cozinha o adulto que será.
Se há chuva e lama, a alegria encharca o corpo, pra ser sovado, depois com palmadas ou castigos, ao penetrar a casa-adulterada limpa, todo sujo de molecagem, de estrepolia cheio e inflado de coragem.
Banho tomado, lanche na mesa e a espera do pai, transformam a criança que foge e se esconde sob a mesa, para surgir o poeta, personagem nascido da acuidade materna, na representação de costumes. Num reflexo simultâneo, entra o tutor familiar pela porta de trás, sempre entre-aberta, a fim de espreitar a criança escondida em textos , que constroem contextos de fuga. Olhares severos guardam-na e aguardam para o combate, caso outra criança queira pulsar, no meio da sala de estar.
"Ando tão a flor da pele...que qualquer beijo de novela me faz chorar." Zeca Baleiro
Um suspiro
atrás de mim, já me atravessa toda
O projeto de
um grito, já é um escândalo O esboço da
vontade, já é desejo O arrastar
do chinelo, já me incomoda O quebrar da
sua unha, já o torna vândalo Falar
carinhoso comigo, já é um beijo...
É carência,
é demência Eu não sei o
quê Tudo isso a
flor da pele E eu nem sei
porque
A lâmpada que pisca, já é um relâmpago A torneira
que pinga, já é um dilúvio Tudo é o que
sinto, nada é o que vejo Vejo um
jacaré, em qualquer calango Se fechar a
janela, é subterfúgio Se for
gentil, já merece um beijo
É carência,
é demência Eu não sei o
quê Tudo isso a
flor da pele Eu nem sei
porque
Qualquer
vento mais forte, já me solapa O raio do
sol, já me faz arder Se rir de
mim, já dou um tapa Anormalidade, já faz enlouquecer Qualquer
nome de rua, já é um meu mapa Nem bem fez
a pergunta, já quero responder
Tudo isso a flor da pele Eu nem sei
porque Acho que o
responsável É o meu
querer
Qualquer
informação já é um discurso Se diz uma
palavra, já é uma oração Qualquerfarelo, já é um banquete Pequena ajuda,
já vira recurso A batida na
porta, é teu coração Um jogo de
palavra, já é um joguete
Nada é tudo
a flor da pele Eu já sei
porque É a falta
que eu sinto De não ter
você
Se encosta
em minha pele Eu já viro
flor Prá que o
sentido se revele Só o seu
amor