quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

...rio em outra margem




   Eles começaram essa obra, pra manterem o sentido e a direção do silencioso pacto que nasceu na epifania do primeiro olhar. Assim, quinzenalmente saiam de suas rotinas, lares, famílias e partiam para a construção da estrutura e manutenção dos telhados de casas pré-moldadas no lado mágico das águas limpas de culpas.

   Tomavam benção as mães no domingo, dormiam sob expectativas e beijando suas esposas e filhos, partiam para o encontro inevitável, desejado, onde de asas abertas abraçavam-se àquela circunstância sempre única.

    Eram comprometidos a realidade daquele momento esculpido em pensamentos e sonhos que antecediam a fuga madrigal.

   Tudo era planejado em detalhes rococós. Combinavam até mesmo a harmonia das cores com que se vestiram, as frutas que comeriam e o calendário lunar, faziam o mapa astral naquela semana, jogavam búzios, liam borra de café e, no domingo que precedia o evento, iam a missa e confessavam suas intenções, rezavam o terço, pra poderem usufruir da infidelidade em paz.

   Compravam passagens em poltronas próximas. Durante a viagem olhares oblíquos, ciganos revelavam: Beatriz e Abelardo, Romeu e Julieta, Capitu e Escovar, Rita Baiana e o Portuga, Iracema e Martins, Brás Cubas e Helena, Nero e Roma. Nada calava os dizeres preliminares na quietude daquela condução, cujo motor barulhava a quentura de seus corpos, latejando o coração.

   Quando fechavam os olhos previam os acontecimentos e faziam a "caminhadura" até o flat de palha na praia da deserta reserva. Naquela semana longe de tudo, encostavam-se no céu, atravessando a fronteira com Caronte: eram livres em arquiteturas tecidas sobre telhados que os protegiam dos pelourinhos do julgamento, num altar de amor chamado Pasárgada: Ilha do imponderável.

   Voltavam sempre às sextas feiras em via crucis, sem se encararem durante a viagem, passando uma borracha de invisibilidade  e nas memórias, pra retornarem o desenho dos personagens que não eram, mas reproduziam numa sociedade castradora, que  os engoliam, até o próximo capítulo.

   Escreviam o roteiro daquela vida de palco e máscaras num novelo que tinha as cores do arco-íris numa película preto em branco.

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Só Memórias

 


A lembrança mais remota de plateia familiar que tenho não aparece no meu álbum de retratos internos:

Não lembro do batizado, aniversários foram poucos, mas primeira comunhão eu fui sozinha, nem lembro se podiam ou queriam ir  a formatura do Primeiro Grau, hoje Fundamental II, eu nem sabia direito o que era, só pediram pra eu ir de uniforme completo. As famílias estavam lá, menos a minha.

O Segundo Grau, agora Ensino Médio, eu fui oradora e meu pai foi, entrou comigo e nem ficou, minha mãe ficou mais um pouco, mas logo voltou pra casa. Eu nem tenho fotos deste momento com eles. Só com meus colegas e professores.

Daí veio a Graduação: Primeiro o Bacharelado, que não tive formatura, porque era caro, programado no Rio Centro. Nós não tínhamos nem como chegar lá...fiquei na comissão um tempo e desisti, mas as vezes penso é que se eu fizesse formatura, talvez tivesse que ir só novamente... Bom, não aconteceu e eu peguei meu diploma brindando com cafezinho junto ao Secretário e o Diretor da Faculdade de Letras da UFRJ.

A seguir veio a Licenciatura, a Especialização, o Mestrado sem nenhuma honraria ou homenagem, a não ser eu olhando no espelho e dizendo: É. Você conseguiu!

No próximo dia 12/11 vou tomar posse na Academia de Letras do Brasil. Tenho direito a dois convidados, mas minha filha não está no Brasil, o que era previsto anterior ao convite, mas irei só. Sei que serei minha melhor companhia mais uma vez, numa ocasião especial.

Minha mãe dizia que eu fui seu melhor parto, que parece até que nasci sozinha, sem precisar de esforços dela ou da parteira. Eu acredito que quando morremos também é um momento que encaramos sozinhos. A sozinhez é inevitável como dizia Paulo Mendes Campos. Nunca senti solidão. Nem sei o que é isso, pois a vida não me deu tempo pra percebê-lo, porém a sozinhez é uma sabedoria de reconhecer que a ausência das pessoas com quem pretende compartilhar ou celebrar seus méritos é pra poucos: é pra quem sabe levanta-se só, quando é chamado pelo nome.



quarta-feira, 13 de outubro de 2021

PARÁFRASE

           No badalar do sino são 6 horas. Há um quarto do dia já perdido e o silêncio após a badalada anuncia os ruídos das calçadas e ruas desenhadas por passos operários. O sol chega a janela e o rosa da parede clareia os olhos da menina, fazendo brilhar seu desejo de viver, mas pela abertura da porta ecoa a voz que corta a liberdade daquele momento. O aposento fica cheio de ordens e vigilância. 
             Abrem-se os olhos, depois da brecha atiçada pela luz dos postes, pois é noite e a fogueira diante da lua cheia faz um chamado a vontade de fugir pela janela. O parapeito vira um trampolim para o mundo. Burlando o controle, a saia voa leve pela rua sob estrelas. A secura da boca na madrugada traz a sede que a acorda.        
       Aos poucos a madrugada atravessa seu corpo tomado pelo tempo. Suas necessidades fazem estremecer, quer os olhos cerrados e banhados pelo sono, porém não consegue dormir, sonhar, nem sequer lembrar do que imaginava quando encarava o papel de parede encarnado, usando carmim no rosto ou batom vermelho, naquele espelho que revelava uma mulher tomada pelo impulso da satisfação. 
           Enquadra-se na moldura a grisalha figura matriarcal que pintou as paredes daquela casa e seu rosto em maquiagens extravagantes, na escuridão fugidia em que a liquidez a fazia ultrapassar obstáculos, tecer desafios e alcançar a sensação permissiva e animar-se, mordendo a oportunidade de sentir o perfume da liberdade. Depois, a água do banho e o cabelo trançado pra escola enganava a censura, mas recendia na manhã o orvalho das noites perfeitas. Escorria das mãos a água gelada e os segredos e confissões que jamais se saberia. 
           Assim, perfeito era o retrato pintado em cores mornas que o raio do sol tingia de luz toda manhã. No fundo do quadro, em meio a mudança dos bisnetos, foi descoberto um bilhete que dizia: a chave da porta nunca foi encontrada, mas nunca deixei de sair e exibir lá fora o que eu não podia ser aqui dentro. Arrombem as janelas e sigam a noite, até o grito do amanhecer, antes que sejam emoldurados.

Quanto?

Nada.Absolutamente resignada. Tudo.Totalmente Absurdo. Metade. Pimenta que não arde. Pouco.Coisa de louco. Bastante. Parece arrogante. Inteiro. Muito verdadeiro. Põe na balança,Coisa de criança. No medidor.Parece traidor. Manõmetro? Paquímetro? Multímetro? Micrômetro? Não. Prefiro o verso livre.

terça-feira, 22 de junho de 2021

Por Aí...

 Os nós dos caminhos são muitos

e tropeçam nos pés que enfrentam

a vontade de ficar parados

lutam com a inércia e os sentidos

atiram-se em direções diversas

pra chegarem no onde do não sei.

As dúvidas reforçam  os emaranhados

dispersos na intuitiva trilha 

que se desenha ao vento ou pela chuva

os passos pesados afundam nas beiras

buscam eiras e escorregam nas incertezas.

Voos não cabem em asas recolhidas

de frio e medo, não embandeira-se

a liberdade

 nem a leveza 

é só chão

encharcado, enlutado e adornado

de lodos que deslizam os calçados

e os dedos da alma trêmula.


Adormecem, 

tudo fica dormente

caĩmbras de inquietude desatinadas

prometem sob o ensaio lunar

a escuridão da lua nova, escondida

marcando o céu de estrelas feito.

Orvalha a manhã a boca ansiosa

sedenta de luz 

e grita o encontro

do fim do caminho: _ Acabou!

Não quero mais tatear o desconhecido

preciso de mim sob a clareza 

da minha própria decisão.

Meus braços são abraçados 

minhas pernas  levitam

as folhas do meu pensamento

em branco escrevem-se

no desejo de Ser o que quiserem

poesias de si mesmas

almas de outono

 prometem 

a primavera e a iluminação 

das cores reluzentes das águas

que banham a face do renovo.

As pontes suspendem veredas

pisadas, erguidas da lama

brotam um chão que eleva

nuvens no solo de junho.






sábado, 6 de fevereiro de 2021

 

 Pé d'água




Agueiro  libertando o céu de tanta prece.

Aguei diante da natureza...

Quanta água em mim.

Desaguei essencialmente...

Aguacei minha civilidade.

Aguaçada na cabeça...

Aguaceiro em meus pés.