quinta-feira, 15 de março de 2012

Página virada

Para  Alissan


   No canto do quarto ela se aquietava, tentando ouvir da vida uma sugestão, sob aquela torrencial chuva e o vento que assobiava pela janela, encolhia-se toda, refém de si-mesma. Os livros sobre o tapete, para serem doados, e as histórias que viveram juntos a cada leitura. Vinis no canto oposto, guardavam os sons da adolescência, trilha sonora de tantos sonhos, de tanta coragem, tanto viço.
    Deslizava as mãos sobre as cartas, nunca mais escreveu tão macio, tantas promessas e juras de amor, como naqueles papéis decorados. Desenhos tão sonhadores protagonizavam o cenário de palavras pra sempre eternas. Não conseguia nem imaginar por onde ele andaria, só lembrava a sua mão decidida, tocando a sua vontade. Precipitava-se toda ao sentir o cheiro dele se aproximando, por trás, sorrateiramente, beijando-a na nuca, quando seus cabelos presos, aromatizados pela comida, se soltavam, ela virava-se e, o prenúncio da fome alimentava o desespero, já que comida não mais haveria, pois jaz a refeição do dia. Depois de todo carinho trasformado em livre expressão do desejo, eles saíam para almoçar fora, encharcados de tanta satisfação.
    Ela sente-se contagiada pela memória de tanto amor. Como pode um amor assim acabar? Por que alguém entra na nossa vida, pra sair dizendo que foi um equívoco? Onde foram parar tantas palavras confessas? Lareiras acesas? Vinhos com o gosto de uma noite inteira?
    _Ontem, ele estava aqui. Diz com todo fôlego que resta, no meio da boca seca, que não sabe mais o que fazer com tanto amor. Ainda bate no peito, que caminha até acelerar um "sentimento maior que o mundo"
    Aos poucos, ela se levanta e segue para a janela. Olha o dia, sente o vento e promete que vai arrancá-lo de dentro dela. Pega o batom vermelho, caminha decidida em direção a parede branca e risca com força tudo o que sente ainda por ele, fazendo uma boca de palhaço, com delineador desenha os olhos bem arregalados, o nariz de bola, o chapéu amassado. Faz-se um picadeiro. A alegria das cores contrasta com a tristeza, que ela tenta disfarçar.
    Hoje, pela manhã, tomou a decisão:_ Não quero tanto amor dentro de mim. Vou partir, sem ter como voltar. Tenho aeroplanos secretos de sair do fundo de mim e nunca mais te procurar. Até que a janela se abra, novamente, para o céu dos meus olhos e me faça acreditar, depois de aprender a confiar em mim, me amar e nunca mais deixar ninguém me atirar num canto solitário recheado de lembranças. Não quero mais o engano, a maldade e a traição, rondando dias-falsos, escondendo verdades - que me negou. Renascerei da minha própria dor.


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