segunda-feira, 13 de maio de 2013

ATIRE A PRIMEIRA PEDRA ,QUEM NUNCA USOU UM ESTILINGUE...






  Uma melancolia matutina foi descendo a rua e o encontrou. Ele buscava uma brecha de sol que lhe trouxesse alguma poesia. Beijou seu cachimbo, sempre apagado, desde que prometeu a mãe que não mais faria nenhum sinal de fumaça. Cabeça baixa, de repente, riscou o chão com os pés, feito um touro e partiu, com a roupa do corpo, uma carteira com algum dinheiro e sem escovar os dentes. No bolso do casaco, somente, uma conta de luz e o inseparável "Estilingue", nome que dera desde o primeiro texto rabiscado a seu caderninho-matriz, onde codificava sua poesia, para depois desmanchá-la em versos livres, frouxos, soltos, como ele se sentia naquele momento de partida.
   As janelas ficaram abertas, a porta encostada, os livros sobre a mesa, o computador com a página aberta em um site pornô, uma garrafa de vinho pela metade, a vida sem tornar-se inteira. Nunca mais se ouviu falar sobre o morador que desapareceu numa manhã comum. Pessoa tão Especial.
   Tinha botas pesadas, aquele homem, aliás ele todo era pesado, seu casaco cheio de bolsos, parecia carregar segredos de todos os tamanhos, além disso ele tinha a percepção de um felino. E a noite, feito um gato era pardo. Havia um mistério naquele silencio que gritava em códigos no Estilingue: aquele  caderninho velho que usava, como atiradeira. Era sua alavanca do dizer...
   Ninguém tinha notícia de um texto por ele escrito, usava um falso nome, pra dizer verdades, pra fazer literatura: ele era vários. Muitos o  habitavam.
   Enquanto há palavras, há vida. Foi o que deixou escrito na parede do apartamento abandonado: ele era uma interrogação, seguida de muitas reticências...
    Todas as paredes de seu apartamento tinham prateleiras, bordadas com muitos livros, raros, banais, clássicos e best sellers, que a zeladora do prédio limpava todas as tardes de segunda-feira. Ele dizia a ela ao pagar pelo serviço: Se um dia eu me for, essa casa será um centro de leitores, não quero que doem meus livros, mas que venham lê-los, fazendo-os existir. E assim foi, desde que desapareceu. Sua casa virou uma biblioteca aberta, sempre aberta e ele um homem tão fechado.
     A cada mês, naquele endereço, chegavam contas e dinheiro pra pagá-las em seguida. Ninguém entendia aquele acontecimento, mas o lugar ficou conhecido. Virou notícia. Virou mistério.
       Durante todo esse tempo do desaparecimento, havia um homem que visitava o centro de leituras, fotografava-o e sumia, depois de muito tempo retornava. Nestes tempos, chegavam novas edições de autores variados, mas um leitor assíduo - um rapaz de uns 16 anos - notou que o logotipo da editora era um estilingue. Resolveu, assim pesquisar que editora era aquela e quais eram aqueles autores. O máximo que conseguiu saber sobre aquelas produções é que elas eram editadas, a partir de originais que chegavam pelo correio, cada vez com um endereço diferente, às vezes de cidades brasileiras, outras de fora do país por um homem que ultrapassava fronteiras.
     

2 comentários:

  1. Lindo conto!!! A cada fronteira ultrapassada, nova fronteira surge e a vida segue...

    Lindo, lindo!!!

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  2. Mas que história linda, num estilo fluente, cativante! Adorei.
    Beijos.

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