sexta-feira, 27 de julho de 2012

Dulcinéia da Lapa

  Para o meu amigo Raul Motta, que me presenteou com a imagem linda de Oswaldo Goeldi, que compõem esse texto:


A quem  busca o impossível justo é que o possível se lhe negue.
Cervantes  M.  Dom Quixote de La Mancha

  Na verdade, ela não é fotogênica, nem agradaria minha mãe, sua presença solapa os limites e é Dona de uma liberdade, que me incomoda. Dulcinéia pisa firme, entre e sai dos rodamoinhos de Quixote, dançando. Como pode uma mulher assim?
   Meus devaneios não dão conta de sua assumida incerteza, da sua experiência em sentir-se cobaia e dizer-se ética, para não usar ninguém como laboratório. Ela bebe mentiras, vomita palavrões e continua linda, sob o céu e sobre o salto invisível, que sempre a fez rebolar, flutuando em pedras e precipícios.
Ela tem no meio da testa uma ruga titânica em forma de interrogação, que incomoda as maiores certezas. O porquê está escrito em seus olhos, quando alguém tenta justificar o ser.
   Os parceiros que sustentam sua imagem intocável, não sabem da sua frequência submundana. Quem a vê, de vez em quando no espelho, é Sancho Pança, amigo que aguenta suas lágrimas escorrendo no meio-fio, enquanto Quixote a busca pela Mem de Sá, em cenários de samba, becos poéticos "a la Bandeira".
Ela não caberia na minha vida é imperfeita demais e por isso a amo perdidamente. Amo com a força que cabe nos braços de um homem, dominado pelo desejo de dominar, capaz de aprisionar a mulher, que habita entre a pele e a alma, na moldura da cama de um motel barato, pra nunca mais deixá-la. Amo seus doces-rudes versos e gestos, flechados de vida, que me resgatam dessa vontade shropenhauriana de eternamente morrer. Ela tem cheiro de flores de feira, eu a respiro no poema que espalha pelas esquinas dessa Lapa, quando passa.
   Minha maior infelicidade é vê-la atravessar a rua, sorrindo para o moinho de vento, que não posso enfrentar por ela.

     Oswaldo Goeldi; Sem título (Ventania), s.d., nanquim sobre papel.                        

Só me resta, no sem-fim da literatura que me engole, os versos de Cervantes:
Procuro na morte a vida;
Saúde na enfermidade;
no cárcere, liberdade;
No encerramento, saída;
No traidor, fidelidade.

Na minha sorte, de quem
já não posso esperar bem,
Ajustou coo céu terrível,
Que, pois lhe peço o impossível,
Nem o possivel me dêem.

Um comentário:

  1. Lindo, lindo, lindo texto!
    Personagens bem construídos em tão poucas palavras, dramumor, fluência, riqueza de emoções...
    Valeu!

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