segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Carta aos meus amantes fiéis

  
Os livros me alimentaram  
 e até hoje matam minha fome.



  Queridos companheiros,sempre, despeço-me de vocês, quando chego a última página, escrevendo a estação do ano e o mês que termino a leitura, mas desta vez resolvi misturar estações e entre um solstício e um eclipse declarar a minha fraqueza, meu desalinho, meu sorriso frouxo e a minha repleta dose de endorfina ao construir um primeiro ângulo entre nossos olhares e o brilho de nossas retinas, diante do reluzir da capa de cada um de vocês, mesmo quando opacos e envelhecidos, numa prateleira de Sebo.
 Não conseguirei falar de todos, mas citarei alguns casos amorosos, que carrego, até hoje, como rito de iniciação, mudança de ciclo ou amantes que visito, inesperadamente, ou trago pra minha cama no meio da noite, ou numa tarde chuvosa, onde o meu olhar reencontra algum de vocês, em plena carência, e pedimos-nos.
   Sou tão literariamente promíscua que minha mesa de cabeceira é habitada por no mínimo três livros que leio simultaneamente, toda noite,antes de ter meu sonho predileto: minha fantasia intelectual de uma biblioteca, onde basta eu desejar um assunto e nasce um livro com mesmo tema na prateleira.
 Ultimamente, tenho me dedicado a três livros que não identificarei, para não desencadear ciúmes, pois a pouco ocorreu uma rebelião nas prateleiras, porque chegaram novos amigos e tive, por isso, que fazer algo que dói em mim: escolher.
   A escolha é um exercício de liberdade que nos custa superar nossa própria escravidão. Porém, nunca fui egoísta com vocês, sempre procurei ter uma relação aberta, desprendida de haveres e condições, dividindo-os com quem quisesse praticar com vocês o prazer da leitura.
    Tudo que resolvi dizer, nesta carta, não traduz a importância que vocês têm pra mim, pois assistiram fechados muitos episódios de minha vida e abriram minha alma, pra infinitas possibilidades. Penso, se minha estante falasse.Entre vocês escondi, desde cedo, tímidos poemas, prosas desconexas, confusão de palavras guardadas, como folhas secas e pétalas e flores, depositadas como lembranças subscritas. Alguns entre vocês chegaram a tal cumplicidade, que foram rabiscados com reflexões existenciais, provocadas em mim pela erupção de idéias, sentimentos,comprometimento com os narradores, personagens, ou eu líricos dos poemas que ainda me emocionam, quando eu releio cada texto.
    Nenhum texto é impenetrável, como nenhum leitor é insensível, assim sempre coabitamos segredos conficionais e de nossos sub textos nasceram análises, releituras, intertextualidades, que são outros nomes para o desdobramento do amor literário, carregado  pelo prazer que ecoa, gerando os processos infinitos do efeito dominó que há entre o pensamento e a palavra.
    Meus melhores amigos, talvez não saibam (embora eu creia que tenham sido criados para isso),o quanto interferiram em mim, ou me fizeram mudar.Revolucionaram idéias e conceitos, me ensinaram a enfrentar preconceitos e a revirar a minha vida e descobrir minha própria literariedade. A identificação com autores, personagens tão afins comigo, tão especulares, opostos e adversos quebraram as fronteiras entre a minha leitura e a leitura de mim.
Provocadores e inversores da teoria da recepção promoveram uma simbiose e capturara-me pra dentro de vocês. Misturaram o ser-leitor com o ser-literário.
     Eis, aqui, meus inspiradores, minhas últimas considerações sobre a importância de terem me dado asas e colaborado que me lançasse, me transforma-se e me sentisse capaz de tornar-me transformadora: Coração Selvagem de Clarice Lispector, Memórias póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis,Dom Quixote de Cervantes, Hamlet de Shakespeare, Sertão Veredas de Guimarães Rosa, A rosa do povo de Drummond, Operário em Construção de Vinícius,Eu de Augusto do Anjos...Dostoiévski,Neruda, Cortázar, Puig, Garcia Marques...fora outros contemporâneos que aprendi amar, como: A Louca da Casa de Rosa Montero e a Sombra do Vento de L.Záfon...Confesso que sou infiel a todos vocês.
      Adotivas criações, que tomo como meus, vocês fizeram tatuagens corrosivas em minha memória, onde se organizam títulos e nomes registrados, eternamente em mim.  Respirei os aromas que ofereceram, senti os sabores, na pele percebi o calor e o frio, vi noites e dias, ouvi vozes entre linhas e me equilibrei e cai sobre  as palavras que escalei, reconhecendo em suas capas a espada que trazem no bojo.
         
      

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