quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Carta às avessas



No tempo infinito do nunca.

    Não te escrevo, nesse momento, porque doem em mim as palavras. Elas gritam em meu seio, em meu ventre e se recusam serem paridas. Há muito, essa prisão de não serem sobre os papéis as impedem de serem escritas. Os dizeres que trago nessa não-carta, borbulham dentro de mim e são esquisitas. Profanam, mas não proferem, preferem a jaula dos sentidos submersos, costuram-se em meus tecidos internos e se dissolvem em meu sangue, circulam e querem vazar pelos meus dedos amputados de caneta, lápis, tinteiro, teclado, antes de entrarem em combate. Elas são desvalidas e valorosas pra mim, mas recusam a folha, como campo de batalha e negam o chão, onde repousam ao nascerem livres, para terem direções e significados. Não querem eclodir impressas: tatuagens verbais.
    Não sei quando, mas elas sairão convulsivas ou suavemente, e arregaçarão  meu Ser; Suspenderão minha sensatez e haverão contrárias a esta epístola negada, que não escrevo, num silêncio que as engole nesse tear de passividade perfilando representações, vulcanizadas no interior dessa primavera embaraçada. Impedida de florescer.
    Esta missiva não há. Não pode ser. Ela é avessa a existir e não manifesta-se em liberdade alguma, contida pelo desejo do claustro. Expressa-se num envelope que desenha a fronteira do escrito e da escritura. Desfaz-se em garrafas, que nunca serão lançadas ao mar. Dissolvem-se em mares e marés, sem jamais chegarem a lugar nenhum.
    Nesse carteado, coleção de jogos e impressões, que não disputa nada, nem celebra um ganhador, nem mesmo entristece o perdedor, as palavras esperam, na minha caixa de correio íntima, acontecerem endereços e caminhos. Assim, empapelando-me, sou o envelope sem registro, endereçado ao vento, sem carta nenhuma, sem palavras, sem remetente, nem destinatário.
    O papel azul da carta desbotada, quase invisível, não consegue reunir as cores primárias, que traduzem aquarelas diluídas por sentimentos, que desfeitos em matizes abstratas, assinam, às avessas, esta carta nunca escrita, pois um incerto pombo-correio de missivas acolhidas pelo tempo remeteu o pensamento nessa denegação.

A sombra de uma folha  na ventania.

Um comentário:

  1. Não escrever uma não-carta é ressentir-se de si!

    que os ventos levem os sentimentos que o carteiro não vai ter o prazer de carregar.

    ;*

    ResponderExcluir